Linha do tempo sobre personagens LGBTQIA+ em desenhos animados

1934 ~ 1939 – O Código Hays

Em 1933 foi criado um desenho animado chamado “Flip the Frog“. Na sua última temporada, intitulada “Soda Squirt”, aparece um que é considerado um dos primeiros personagens queers (que se transvestem ao gênero oposto); ele se transformava em monstro. Um ano após o lançamento, através do Código Hays — um conjunto de regras “morais” que deveria ser seguido nas mídias lançadas, principalmente em filmes —, cenas que fossem consideradas “pervertidas, de sexo ou qualquer coisa semelhante” seriam proibidas. Neste mesmo ano houve a criação da Federal Communications Commission (Comissão Federal de Comunicações), trazendo as primeiras regulações para conteúdos televisivos. Este período foi marcado por forte censura e os produtores trabalhavam com maior preocupação em ter seus trabalhos recusados e até mesmo ter suas licenças para reprodução revogadas. Tudo isso não se tornou um empecilho, entretanto, e os criadores de conteúdo da época usaram de sua melhor qualidade para conseguir lidar com as censuras: a criatividade.

1940 ~ 1949 – Início das animações coloridas

Com a vinda das animações coloridas, os criadores começaram a mudar este cenário ao conseguir inserir elementos queers nos desenhos. Os criadores geralmente diziam que estes fatores foram inclusos por se tratar ser “apenas um desenho, algo que não existe, situações fora da realidade”. Conforme as regras estabelecidas, era proibido inserir dois homens se beijando num filme, mas quando Pernalonga beijou Hortelino Troca-Letras (ou apenas Hortelino), tudo foi considerado apenas uma piada. Desde então vimos mais destes elementos queer nos desenhos animados. O desenho do Pernalonga, feito e distribuído pela Warner Bros., possuía diversos elementos queers. Além de ter beijado outro personagem masculino, ele também se vestia com roupas femininas em outros episódios. Mesmo com tudo isso evidenciado nos episódios, como dito por Chuck Jones, seu criador, estes eram fatores utilizados para tornar o desenho mais engraçado e nada que indicasse de fato que ele fosse da comunidade LGBTQIA+. Independente da declaração de Jones, a opinião do público pode acabar divergindo. Tudo isso colaborou para que vários artistas conseguissem fazer suas personagens conforme elas realmente eram, entretanto, com tanta liberdade para a época, também vimos alguns fatores negativos que reverberam inclusive atualmente: a poluição com estereótipos.

1950 ~ 1990 – A explosão dos desenhos

Aqui já é possível ver uma leve melhora nas regras anteriores. Apesar de serem as mesmas, a censura diminuiu um pouco. Através do The Television Code (algo como O Código da Televisão, em tradução livre), de 1952, foram estabelecidos alguns tópicos a serem considerados nas obras criadas, entre eles “Responsabilidades Sobre Crianças” e “Decência e Decoro em Produção”. Em um dos parágrafos, é dito que “crimes sexuais e anormalidades são totalmente inaceitáveis em seus materiais”, assim como outro em que diz “ao desenvolver programas, promovam e adotem a ideia moral, social e ética da vida americana”. Os personagens que apresentassem traços queer e/ou LGBTQIA+ — neste momento separado, pois, como no caso do Pernalonga, havia traços queer, mas não era uma personagem LGBTQIA+ –, não eram mais retratados de forma cômica, mas agora vistos como vilões, sendo violentamente atacados. Houve tentativas de criar personagens que fossem LGBTQIA+ de forma subjetiva, tentando minimizar essas violências, o que é bastante conhecido hoje em dia como “queer bait“, termo usado para mostrar quando criam uma personagem LGBTQIA+ que não clara ou evidentemente faz parte da comunidade, mas que seu contexto ou características apontam para isso. Um dos fatores que mostram este artifício é quando há um herói que é magro e bonito, e um vilão ou antagonista que é gordo e completamente diferente. Exemplo claro disso está em A Pequena Sereia, da Disney, em que Ariel, a protagonista, é uma linda sereia branca e magra, enquanto a vilã da história, Úrsula, é um ser híbrido de mulher com polvo, com cores cinza e preto. Por outro lado, o público costuma gostar mais dos vilões do que dos mocinhos, pelo menos hoje em dia. A facilidade de identificação e a possível visão mais “palpável”, torna esta peça mais próxima de quem consume o material, o que geralmente é uma visão alternativa à história contada. Protagonistas heterossexuais, por exemplo, são vistos na maioria esmagadora das mídias e não costumam trazer muitas inovações, outro motivo pelos quais geralmente os vilões são mais adotados pelo público. Os criadores de Gaston e LeFou, de A Bela e a Fera, assim como Jafar de Aladdin (perceba, ambos vilões ou antagonistas de seus respectivos conteúdos) — Andreas Deja & Howard Ashman— são declaradamente gays e possivelmente há traços de suas influências pessoais neles. Já que foram designados para fazer vilões, eles inseriram assim seus elementos de queer bait.

1990 ~ 2000 – Introdução da TV à cabo

Se na programação da TV aberta já era algo difícil de ser exibido ou aprovado, quando nos referimos a temas LGBTQIA+, com a chegada da TV à cabo e consequentemente seus respectivos canais exclusivos para desenhos animados, os criadores encontraram ainda mais obstáculos em expor suas criações. Com receio de sofrer boicotes, foi criada uma “cultura do medo”, onde estes personagens, apesar de inclusos, eram vistos sempre com maus olhos (como citado acima). Um dos exemplos clássicos desta época é a personagem Ele de As Meninas Superpoderosas que, para uma sociedade majoritariamente cristã, uma figura de diabo vestido efeminadamente e que só poderia ser reconhecido como “Ele”, com certeza não é a melhor das influências. Aqui no Brasil temos vários canais específicos para desenhos animados como no caso de As Meninas Superpoderosas na Cartoon Network. Além dele, há também a Nickelodeon, Disney, Boomerang… entre todas elas, darei destaque à Cartoon Network, que recebeu uma das maiores ativistas LGBTQIA+ atualmente, a cartunista, compositora, diretora e desenhista, Rebecca Sugar — citada logo acima. Ela entrou para o time de produção do famoso desenho A Hora de Aventura como revisora de storyboard (pessoa responsável em sequenciar esboços para transformar em alguma cena animada) e conforme perceberam seu destaque, em pouco tempo se tornou artista de storyboard. Durante seu trabalho com o desenho Adventure Time (A Hora de Aventura), Rebecca sugeriu um relacionamento entre a Princesa Jujuba e a vampira Marceline e imediatamente recebeu uma negativa, sendo informada ser proibido ter personagens que fossem abertamente LGBTQIA+. Apesar do apoio do criador do desenho, Pendleton Ward, havia resistência do estúdio, uma vez que eles se preocupavam com a distribuição do desenho em países em que ser LGBTQIA+ pode ser censurado pela mídia local ou considerado crime. A Hora de Aventura foi lançado em 2007, tendo seu encerramento em 2018. Durante esse tempo, provavelmente a ideia das personagens serem um casal deve ter sido amplamente discutida e consequentemente, aceita: em dado momento Jujuba e Marceline se beijam, confirmando sua relação de amor. Depois de sua experiência com o desenho, Rebecca criou o também conhecido Steven Universo. O desenho conta a história de um garotinho que não consegue entender a necessidade de gênero e possui amigas extraterrestres que se consideram não-binárias (não se identificam exclusivamente como homem ou mulher). Desde a primeira temporada, os espectadores já viram que duas dessas amigas extraterrestres, conhecidas como “Gems“, são apaixonadas. O desenvolvimento e relação de ambas é um processo lento e que cada passo foi uma luta diferente com a produção. Por exemplo, uma das especificações do Cartoon foi de que as personagens não poderiam se beijar. “Eles [as personagens LGBTQIA+] são sistematicamente removidos [de qualquer mídia]”, evidencia Rebecca Sugar, sobre a ausência de nas produções mundo afora. Rebecca Sugar recebeu, obviamente, muitas críticas e elogios em seu trabalho. Em uma das declarações à desenhista, lhe foi dito que “não acredito que você [Rebecca] pôs assuntos adultos em um desenho infantil”, coisas que geralmente (e vimos isso há alguns parágrafos) são abordadas de forma subjetiva e não é comum ver em conteúdos infantis. A resposta de Rebecca foi a mais simples e direta possível: A reflexão que ela traz é bastante fácil de ser respondida: o conteúdo heteronormativo é considerado “não adulto”, mas o LGBTQIA+ sim? Crianças nascem e se identificam com cenas, personagens ou histórias LGBTQIA+, por que isso deveria ser considerado “conteúdo adulto”? Poucos anos depois, a Cartoon Network liberou Rebecca Sugar para expor suas personagens como parte da comunidade LGBTQIA+, mesmo com avisos de que seu desenho poderia sofrer consequências em alguns lugares do mundo. Na Comic Con de 2016, Rebecca Sugar se revelou bissexual e os problemas enfrentados sobre sua sexualidade em relação à indústria e sua vida pessoal. Ter falado em público sobre sua sexualidade ajudou não apenas a fortalecer o laço com seu trabalho, mas também em desenvolvê-lo como deveria. Seguindo sua trajetória de sucesso, em 2019 recebeu o prêmio GLAAD na categoria de Melhor Programa para Crianças & Família por Steven Universo. Em 2018, Steven Universo e Rebecca Sugar fizeram história ao apresentarem a primeira proposta de casamento gay em desenhos animados.

2000 ~ tempos atuais – serviços de streaming

Após muitas lutas e esforços da comunidade LGBTQIA+ para serem ouvidos e representados nas mídias, inclusive em desenhos animados, hoje em dia com a mais variada possibilidade de serviços de streaming e aplicativos como Netflix e YouTube, vemos uma boa quantidade de desenhos animados que podem não o ter como foco, mas ainda assim abordam o tema LGBTQIA+. Por estarmos livres daquelas antigas regras via queer bait (apesar de ainda existir), as características das personagens, os criadores e produtores possuem mais liberdade para expressarem de fato as histórias que querem contar. Dessa maneira, a autonomia de seus criadores aumentou, possibilitando maior representatividade LGBTQIA+ em desenhos animados, não exclusivamente sobre orientação sexual, mas assim como identidade de gênero, comunidade queer e todo o resto que compreende a sigla. Um caso curioso (mas definitivamente não isolado, pois muitos outros autores só conseguiram se sentir seguros em expor a identidade de seus em tempos mais recentes) é o da Velma, de Scooby-Doo. A mocinha que foi concebida em 1969, recebeu uma nova versão em 2010 e foi oficialmente declarada como lésbica. Outro exemplo mais recente é das personagens Adora e Felina, do desenho She-Ra e as Princesas do Poder, um reboot do icônico desenho de 1985. Lançado em 2018, o desenho conta ainda com um personagem que é homem trans, Jewelstar, que também é dublado por um homem trans, em sua dublagem original. She-Ra e as Princesas do Poder está disponível na Netflix. Outro personagem que, apesar de não fazer tanto sucesso no Brasil mas com certeza entrou para a história dos personagens LGBTQIA+ em desenhos animados é Benson, de Kipo e as Criaturas Incríveis (disponível na Netflix) em que, através de um diálogo comum, expõe sua orientação sexual e afirma ser gay. Para quem acompanhou a história de personagens LGBTQIA+ na mídia, ver um garoto fazer isso tão naturalmente num desenho animado, é de se emocionar. Entre os anos de 2017 e 2019, a inclusão de personagens LGBTQIA+ em desenhos animados aumentou em 200%, um número alto, considerando que, apesar dessa porcentagem, para que crianças tenham acesso a esses títulos, requer uma certa procura. Crianças LGBTQIA+ existem e quando elas se veem representadas e se identificam, com certeza há satisfação em saberem que existem pessoas — e até mesmo personagens — que sabem como você se sente.

Outras personagens LGBTQIA+

Fora da linha do tempo acima, confira algumas outras personagens LGBTQIA+ em mídias como quadrinhos e outras animações:

Bob esponja

Outro fato curioso é sobre o protagonista do desenho Bob Esponja, que tem o mesmo nome do título. O simpático, sempre sorridente e alegre personagem, desde sua concepção, foi muito especulada a sexualidade do personagem: seja pelo seu jeito e comportamento ou sua relação extremamente fraternal com seu grande amigo, Patrick Estrela. Se engana quem acha que a sexualidade alheia se resume a isso, e ano passado a Nickelodeon revelou em suas redes sociais que ele — e outras personagens do estúdio — faz parte da comunidade LGBTQIA+, se identificando como assexual!

Korra

Nessa mesma postagem da Nickelodeon, também foi revelado (apesar de não ser um pouco mais evidente que o caso do Bob Esponja) que outra personagem de seus desenhos faz parte da comunidade LGBTQIA+: a Korra. A sucessora de Aang, na linhagem Avatar, é bissexual, o que pode ser sugerido nos últimos momentos da trama.

Wiccano

O filho de Wanda e Visão, Wiccano, é gay. Isso é revelado nos quadrinhos dos Jovens Vingadores, que se passa no vasto universo da Marvel, evidenciando seu relacionamento com Hukling — seu nome foi uma homenagem ao herói Hulk. O namoro entre estes dois poderosos dos quadrinhos se estendeu e atualmente eles são casados.

Orochimaru

Responsável pela morte de muitos, Orochimaru, do anime Naruto, possui gênero fluido. Na sequência canônica do anime, Boruto, a personagem foi questionada pelo filho da seguinte forma: “você é meu pai ou minha mãe?” e Orochimaru respondeu, com muita tranquilidade, que “já foi homem há tempos, e também já foi mulher… e que no final das contas, a aparência não importa.” Indicando uma de suas facetas, que é a de poder viver em qualquer corpo.

Touya

Talvez a referência seja um pouco mais antiga e/ou específica, mas o irmão de Sakura, do anime Sakura Card Captors, é gay. Touya tem um caso com Yukito, um moço que é amigo da família e ambos sempre estão juntos: na casa, na rua ou na escola. Não que seja apenas isso, ambos têm muito amor pelo outro e com o desenvolvimento da trama, fica cada vez mais explícito esse sentimento.

Veja também:

Além de personagens LGBTQIA+ em desenhos animados, confira também a representatividade no Oscar! Fonte: Insider, YouTube e Polygon.

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